sábado, 3 de março de 2012

Ponta do Coral: proposta de turismo comunitário contra o turismo predador


Por elaine tavares  - jornalista


O jornalismo diário, quando nasceu, no 700, veio para servir ao capitalismo também nascente. Com a popularização das folhas havia que usá-las para propagandear os produtos que começavam a surgir nas prateleiras da vida do consumo. As notícias que bordeavam os anúncios eram “o detalhe”. Ou seja, a informação passava a ser o chamariz para a propaganda de produtos, muitas vezes inúteis. Nesse sentido, a maioria das empresas jornalísticas nada mais era do que espaço da mais-valia ideológica do capital. O jornal, depois o rádio, a televisão e, por fim, a internet, serviam e servem para manter as gentes cativas da promessa do capital. Assim que nada se pode esperar dos meios de comunicação. A não ser a contradição, que querendo eles ou não, se expressa vez ou outra fazendo avançar a consciência de classe. Mas, é coisa rara.


Por isso não é de estranhar a posição da RBS (Rede Brasil Sul), esse oligopólio do sul do Brasil, no que diz respeito ao projeto da empresa Hantei para a Ponta do Coral, um espaço de terra que historicamente serviu de espaço dos pescadores e da comunidade e que foi irregularmente vendido pelo Estado à iniciativa privada. Hoje, a Hantei apresenta um projeto de ocupação da área no qual propõe erguer um hotel de luxo, fazer mais um aterro e construir uma marina para o atracamento de mais de 250 embarcações e de barco de grande porte.  Na semana passada várias reportagens da RBS tecendo loas ao projeto privado levantou a ira dos movimentos sociais que lutam desde os anos 30 do século passado para fazer daquele lindo lugar um espaço comunitário e de turismo ecológico. Mas, a RBS nada mais fez do que manter seus “hábitos alimentares”, que é ser a voz do poder. Para a elite predadora que hoje domina Florianópolis, da qual a empresa de comunicação faz parte, o modelo de turismo proposto é o de alto luxo, para usufruto de poucos e com ganhos para poucos.

Nos anos 30 do século XX a área da Ponta do Coral pertencia a Standart Oil e, naqueles dias, o Estado catarinense conseguiu vencer na justiça e retirar o comércio de venda de óleo da empresa estadunidense do lugar para que o mesmo fosse incorporado a outras funções na cidade, e foi adquirido na década de 60 pelo Governo estadual, passando a abrigar a lavanderia da Fucabem, uma entidade de cuidados ao menor. Quando chegaram os anos 70 Florianópolis começou a crescer e veio o projeto da Beira-Mar, que acabou separando a Ponta do Coral da cidade, ficando aquele pequeno espaço de terra perdido para além da via rápida. Mesmo assim, era ocupado pelos ranchos de pescadores e pela comunidade que acorria ao lugar para pescar e brincar com as crianças. Nos anos 80, sem qualquer consulta ao povo da cidade o governo do Estado decidiu vender a Ponta do Coral para uma empresa de Criciúma. Segundo o arquiteto Loureci Ribeiro essa venda foi totalmente irregular porque a Câmara de Vereadores sequer foi ouvida e não houve decreto da Assembleia Legislativa autorizando a venda como previa a lei. Foi uma canetada do governo, logo não deveria ser considerada. Na época, ele ainda era estudante e junto com outros colegas da UFSC, dos cursos de arquitetura e do jornalismo, mais os pescadores e movimentos sociais iniciaram um movimento pela recuperação do espaço. A ponta tem 45 mil metros quadrados, mas apenas 12 mil foram vendidos porque o restante é área de marinha e não poderia ser mexido.

Mas, a venda, além de não passar pela Câmara sofreu uma surpreendente virada poucos anos depois quando os vereadores alteram o zoneamento e permitiram que se construíssem ali prédios de até 18 andares, quando antes eram permitidos apenas quatro andares para uso público e institucional. “Ou seja, o empresário comprou um terreno por um valor que era podre e enricou de uma hora para outra”, denuncia Loureci.  Ele lembra que o então vereador Edson Andrino se elege prefeito pouco tempo depois, muito em função da posição que teve contra essa alteração de zoneamento. O que mostra que a cidade no seu todo não queria a venda e muito menos a maracutaia da alteração de zoneamento para beneficiar a proposta de construção de hotel de luxo. Loureci ainda recorda que, depois, aproveitando outra alteração do zoneamento pelo Plano Diretor de 1997 o então vereador Mauro Passos, no ano de 2003, fez um Projeto de Lei que em primeira votação havia também conseguido garantir que aquela área fosse reconhecida como de área verde e de lazer, reforçando a ideia de ser aquele lugar um espaço comunitário. “Isso também mostra o quanto essa luta vem se fazendo num contínuo desde os anos 30”.

Mas, é o então vereador Jaime Tonello que, depois de uma audiência pública, promove uma aberração e altera a lei proposta pelo Mauro Passos que dispunha ser a área um espaço público.  Pois o vereador conseguiu repassar para a Hantei o restante da área que era de marinha e, portanto pública. “E para maquiar isso, propõe se fazer um aterro que praticamente duplica a área com a conversa fiada de que vai ter espaço para o público. Ora, o problema disso tudo é que a Câmara não teria poder de legislar sobre área de marinha, só a união pode fazer isso. Então, essa lei é ilegal”.

O fato é que apesar das denúncias nada aconteceu e a Hantei segue com seu projeto, que vem sendo mostrado com riqueza de detalhes pela mídia como mais um empreendimento que vai trazer o progresso e o emprego para os florianopolitanos. O projeto também mostra parques e áreas públicas que, nas maquetes, aparecem como lindos e maravilhosos. Mas, a comunidade sabe muito bem que aquela área sob a administração da Hantei não será uma área pública. No máximo haverá uma pracinha mixuruca que, aos poucos será incorporada ao complexo privado, como sempre acontece.

Movimentos querem turismo ecológico e não predador
O que é importante que as pessoas da cidade saibam é que ninguém é contra a ocupação da Ponta do Coral. A questão é: qual é o projeto que realmente torna a área pública, de uso de todos? A proposta da Hantei se difere radicalmente da proposta do movimento social no que diz respeito ao turismo. Enquanto a empresa quer um turismo privado, de alto luxo, com a venda da vista e do lugar estratégico para o desembarque de barcos, os movimentos querem a constituição de um turismo ecológico, de preservação da natureza e no qual as famílias que vivem na região possam atuar e garantir renda. A Hantei propõe a geração de empregos que não passam de poucas vagas de camareiro e garçom.  Já os movimentos querem a geração de trabalho e renda para a toda a família, para os barqueiros, os pescadores, o turismo gastronomico, de lazer, cultural e ambientais  geridos pelas gentes locais.

Segundo Loureci Ribeiro, se a área está degradada e ocupada pela “marginalidade” como diz a televisão, a culpa não é dos movimentos. Quem deveria cuidar do espaço é quem detém a sua posse, no caso, a Hantei e o poder público. O que não dá é jogar para os ombros do movimento social a culpa pelo abandono. Isso é mais uma jogada política para enganar a população. “O fato é que a Ponta do Coral deve ser ocupada levando em consideração o que a natureza nos deu: a beleza e a diversidade biológica. Ali nós temos uma embocadura do manguezal do Itacorubi, área de amortecimento, que é riquíssima em diversidade, ligada a cultura da ilha que está vinculada com o mar, com a maricultura, com a gastronomia. É isso é o que temos de aproveitar”.

Loureci lembra que o Plano Diretor, na leitura das comunidades, mostra que sempre é reforçada a necessidade de que existam, junto com o crescimento urbano, áreas de lazer para a população para garantir qualidade de vida. Na verdade, junto com a Ponta do Coral, ainda existem a Ponta do Lessa e a Ponta do Goulart, que fazem o triangulo da embocadura do manguezal do Itacorubi. As três pontas poderiam, então, servir como uma importante área de resgate do acesso ao uso coletiva da orla da Baia Norte ao lazer e ao turismo ambiental. “Nós podemos construir ali um parque cultural náutico, mas não aos moldes das marinas da Hantei. Seria uma relação náutica com a cultura local, com as populações tradicionais, com os pescadores e suas embarcações que seriam os que guiariam as pessoas por dentro do manguezal, e com passeios no trecho entre as comunidades históricas de Santo Antônio de Lisboa e Ribeirão da Ilha, núcleos da maricultura, com educação ambiental, sem edificações. A Ponta do Goulart tem uma área grande de ninhos que também poderiam ser visitados nas épocas certas para observação, assim como na Ponta do Lessa as pessoas poderiam conhecer os sambaquis, Esse tipo de turismo moveria muito mais renda para a população local do que o proposto pela Hantei, que beneficiaria a um único empresário”.

Na verdade, a proposta dos movimentos sociais está conectada com o que há de mais moderno no turismo mundial, que é a preservação da natureza e do meio ambiente, a distribuição dos ganhos, enquanto o que propõe a Hantei é o mesmo velho modelo de destruição da vida em função de uma vista que aparece muito mais como objeto do que algo a ser vivenciado ou desfrutado.

Agora, abre-se mais uma queda de braço no processo de posse da Ponta do Coral. De um lado, a Hantei, com o apoio da mídia entreguista, e do outro os movimentos sociais. Não será fácil para os movimentos que continuam sendo boicotados e silenciados nos meios de comunicação. Mesmo tendo lançado uma carta aberta pedindo à RBS que respeitasse o fato de estar usando uma concessão pública, o que exigiria a democracia da diversidade de vozes no debate do tema, os militantes da ocupação ecológica da Ponta do Coral foram desconvidados dos programas de debates e quando aparecem nas reportagens cumprem apenas a aparição ritual de poucos segundos. O que fica então para quem vê a notícia é o brilho do engano do projeto privado. As propostas do movimento não são mostradas e os militantes parecem apenas como os “do contra” , os “contra o progresso”.

Bem, isso não é verdade. O movimento que luta pela Ponta do Coral quer a ocupação, é a favor da geração de empregos e do turismo comunitário. Mas, é outra proposta, diversa da proposta do lucro privativo. Ela pressupõe distribuição da riqueza e preservação daquilo que a cidade tem de mais bonito: a sua natureza. Sem ela, não serão os prédios de luxo que atrairão os turistas. O desafio é fazer com que a proposta dos movimentos chegue às gentes, a despeito da RBS e suas co-irmãs...

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